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21 junho 2025

Contabilidade e a idade medieval europeia

A escrituração contábil durante a Idade Média evoluiu em várias direções distintas. O desenvolvimento, no norte da Itália, das sociedades de risco e do comércio ultramarino levou ao surgimento do sistema de partidas dobradas que utilizamos hoje. É tentador fazer da história da contabilidade apenas a história da escrituração por partidas dobradas, ignorando rapidamente os mil anos entre a queda de Roma e a publicação da Summa de Arithmetica de Luca Pacioli, em 1494.

Por estarem fora da linha de eventos que levou diretamente às partidas dobradas, os detalhes das práticas medievais fora da Itália tendem a ser negligenciados ou tratados apenas como curiosidade histórica.

Em contraste com os procedimentos contábeis codificados do Império Romano, os registros medievais eram geralmente locais e centrados em uma série de instituições especializadas. Embora seja difícil isolar as influências romanas, em ambos os períodos os registros eram mantidos, principalmente, porque os empregadores precisavam monitorar seus subordinados que atuavam como seus agentes.

O paralelo mais próximo do método romano de escrituração está na contabilidade de recebimentos e pagamentos da Igreja Católica, que, por centenas de anos, cobrava e arrecadava impostos em toda a Europa. Já no século VI, diáconos eram designados para administrar as propriedades da Igreja e prestar contas de suas receitas. Agentes do tesouro papal estavam localizados nas províncias e tinham a responsabilidade de enviar os recebimentos para Roma.

O valor da contabilidade como ferramenta para a gestão sistemática de propriedades foi reconhecido desde cedo. No século IX, Carlos Magno elaborou o Capitulare de Villis, uma série de instruções detalhadas para seus administradores sobre a supervisão das terras reais e o envio de relatórios ao soberano. Embora os métodos de cálculo fossem primitivos e os períodos contábeis irregulares, Jack (1966) observou que “Carlos Magno enfatizava a necessidade de organização, de agrupar temas semelhantes sob um único título e de revisar de forma ordenada as prováveis fontes de receita”. Fazia-se um inventário anual das propriedades e dos bens móveis do rei. Receitas e despesas eram registradas em livros separados, e qualquer saldo era enviado ao monarca.

Na Inglaterra pré-normanda, a alfabetização era tão rara — até mesmo entre a nobreza — que um sistema escrito de contabilidade dificilmente justificaria seus custos. Até o século XI, os dados financeiros eram quase sempre comunicados e verificados oralmente, sendo os documentos escritos apenas complementares à palavra falada, que era considerada mais importante. Naquela época, a introdução do ábaco e outras melhorias nas técnicas aritméticas coincidiu com um renascimento do interesse pela linguagem escrita. Um sistema de registros escritos foi, então, gradualmente formalizando uma tradição contábil que até então era essencialmente oral.

Os métodos contábeis medievais ingleses merecem atenção por diversas razões. Os primeiros registros fiscais do governo e os livros de contas senhoriais estão entre os documentos mais antigos preservados na língua inglesa, e as abordagens adotadas para resolver problemas nessas áreas possuem paralelos evidentes na prática moderna. A contabilidade de agência da Idade Média lançou as bases para os atuais princípios de stewardship (responsabilidade fiduciária) e conservadorismo. Ela também ajudou a criar as condições para o rápido avanço das tecnologias contábeis ocorrido durante a Renascença.

Além disso, a ampla disseminação e durabilidade desses sistemas sugerem que a contabilidade por partidas dobradas não é a única forma eficiente de organizar dados financeiros — e que, em muitos casos, métodos mais simples podem produzir resultados igualmente úteis.

A sociedade feudal é frequentemente representada como uma pirâmide em múltiplos níveis, na qual os indivíduos de cada nível inferior recebiam certos direitos em troca do cumprimento de determinados deveres. Esse sistema exigia diversas delegações de autoridade e a transferência de direitos sobre terras dos proprietários nominais para os possuidores e usuários efetivos. O problema contábil característico desse contexto era o da comunicação e verificação vertical entre o principal e seu agente.

Nas finanças reais inglesas, isso levou ao sistema de proffer, utilizado para registrar e verificar a arrecadação de impostos, enquanto na contabilidade dos feudos deu origem ao demonstrativo de charge and discharge, preparado pelo administrador da propriedade (steward) em nome de seu senhor.

Até o final da Idade Média, o trabalho humano era o fator produtivo mais dinâmico, e os sistemas sociais feudais eram projetados para manter a mão de obra fixa na terra. Os manors — as propriedades da nobreza — eram as fazendas e oficinas da Grã-Bretanha medieval. A contabilidade senhorial na Inglaterra descrevia os recebimentos e pagamentos de uma entidade econômica autossuficiente, e os resultados de suas transações com terceiros eram classificados como “externos” nas contas.

Outra característica da vida senhorial era a administração por procuração. O senhor feudal, como um duque ou conde, frequentemente dependia, para seu sustento, da produtividade de grandes extensões de terra e dos esforços de centenas de pessoas que ele não podia supervisionar pessoalmente. A gestão do dia a dia ficava, normalmente, a cargo de uma hierarquia de funcionários e chefes de departamento. O incentivo do senhor para manter registros contábeis surgia de sua necessidade de fiscalizar a integridade e a confiabilidade de seus administradores, evitar perdas e furtos, e, de modo geral, estimular a eficiência. Do ponto de vista do steward, os registros contábeis serviam como prova de que ele havia cumprido suas obrigações de forma honesta e adequada.

A autossuficiência dos feudos e a relação de agência são fundamentais para compreender as diferenças entre os registros patrimoniais da época e os registros contábeis atuais. A independência econômica e a ausência de necessidade de prestar contas a terceiros significavam que pouco do que hoje chamamos de contabilidade financeira era necessário. As vendas a crédito eram raras. Os ativos eram inventariados, mas balanços patrimoniais dificilmente eram elaborados. As ferramentas do senhor podiam ser contabilizadas juntamente com os bens pessoais de seus arrendatários, e os valores monetários, às vezes, eram combinados com quantidades físicas de bens nas demonstrações de ativos do feudo. Não havia uma distinção clara entre despesas de capital e despesas operacionais — o custo de um cavalo era registrado da mesma forma que o custo do feno que ele consumia.

As despesas podiam ser alocadas em detalhes entre várias atividades, de modo a demonstrar os resultados de cada uma, mas o lucro ou prejuízo geral normalmente tinha pouca relevância. Por vezes, a narrativa das contas era interrompida para incluir estimativas sobre o que poderia ter sido obtido caso uma decisão diferente tivesse sido tomada.

Os administradores senhoriais mantinham registros não em benefício da entidade econômica, como se faz hoje, mas sim para sua própria proteção. Em grandes propriedades, um surveyor (fiscal de terras) organizava um livro contendo os aluguéis de terras e taxas devidas, que era utilizado pelo receiver-general, responsável pela arrecadação efetiva dessas receitas e pelo seu registro por fontes. Outros funcionários pagavam e controlavam salários e despesas. Auditores examinavam periodicamente e resumiam todas essas contas, que eram essencialmente registros dos indivíduos envolvidos, e não do feudo em si. Como seu objetivo era apenas demonstrar que as obrigações haviam sido devidamente cumpridas, havia uma tendência natural para que cada administrador registrasse apenas os itens pelos quais era responsável, apresentando cada tipo de receita em contraposição aos respectivos pagamentos.

Poderia haver ainda mais diversidade na escrituração medieval do que, de fato, existiu. As razões modernas para a consistência e a comparabilidade contábil praticamente não existiam. No entanto, parece que o ambiente feudal, como qualquer outro, favorecia certas técnicas. Governos municipais, propriedades monásticas e laicas, residências e guildas de ofício — ou worshipful companies — compartilhavam uma tradição de escrituração no modelo de charge and discharge e auditorias de prestação de contas. Todos os tipos de registros eram sincronizados com os ciclos agrícolas, sendo o dia de Michaelmas (29 de setembro) a data que marcava a colheita e o encerramento do ano contábil natural.

A escrituração de entrada simples no Japão feudal seguia um padrão semelhante de registros descentralizados, uso do ábaco para numeração visual, ênfase no controle e responsabilização pessoal dos agentes encarregados da contabilidade.

A autossuficiência do feudo impôs limites ao seu desenvolvimento como instituição. A Inglaterra, que havia sido isolada geograficamente do comércio com o Oriente Próximo durante a Renascença, encontrou-se em uma posição mais favorável após a descoberta da América. No século XVII, as cidades começaram a substituir os feudos como centros da vida econômica, e os fabricantes independentes passaram a competir com os artesãos rigidamente regulamentados pelas guildas. A expansão do comércio ultramarino criou novos mercados e fontes de suprimento. O foco passou da administração dos ativos senhoriais para a proteção dos investidores corporativos e para questões relativas à apuração de resultados e ao pagamento de dividendos.

A contabilidade de agência permaneceu, mas começou a assumir a forma sofisticada que já havia se desenvolvido, séculos antes, no norte da Itália, onde a acumulação de capital e as longas distâncias comerciais favoreciam operações por filiais, arranjos de crédito e transações por consignação.

Não se pode culpar os contadores senhoriais por não produzirem dados de que não precisavam. O executivo típico da Idade Média praticamente não escrevia e lia muito pouco. As contas do Exchequer (Tesouro Real) e dos feudos eram mantidas, normalmente, sob o pressuposto de que nem o rei nem o barão jamais as leriam. Assim, a contabilidade tendia a se encerrar no ponto em que o chefe de cada departamento dispunha de informação suficiente para seu próprio uso.

Homens desse contexto dificilmente desenvolveriam um método contábil que colocasse ativos e patrimônios líquidos em oposição, porque não possuíam um conceito real de capital. O feudo era o seu capital. A terra raramente era comprada ou vendida; eles só podiam atribuir-lhe valor com base em algum múltiplo da produção líquida anual. Com a produção tão interligada ao consumo, havia pouco incentivo para determinar a renda total. Tampouco havia necessidade de uma contabilidade de custos sistemática, pois a maioria dos feudos seguia um padrão repetitivo e pouco variável de receitas e despesas.

No entanto, nas áreas de controle interno e auditoria, a prática senhorial estava muito à frente do “Método de Veneza” de Pacioli. Demonstrava como registros feitos principalmente para apurar um balanço anual podiam ser adaptados para ajudar na gestão diária dos negócios. A doutrina do conservadorismo era uma forma de autoproteção para o administrador do feudo (steward) diante da auditoria; essa mesma tendência à subavaliação é central na contabilidade corporativa moderna. Inventariantes e administradores de bens continuam utilizando o demonstrativo de charge and discharge para prestar contas da gestão de ativos sob sua responsabilidade fiduciária.

Até mesmo o sistema moderno de pesos e medidas — com todas as suas imperfeições — tem origem naquela época, quando uma jarda correspondia à distância do nariz do rei até a ponta de seu braço estendido. Se muitas coisas mudaram, há ainda semelhanças suficientes que fazem com que nossa herança contábil da Idade Média seja rica em formas, técnicas e ideias.


 

Michael Chatfield - The History of Accounting

Preferi não usar o termo "grandes civilizações" aqui, pois o verbete trata de várias situações, especialmente Inglaterra e, em menor quantidade, o Japão. Mas é interessante a posição do autor, que destaca a importância da contabilidade medieval e o fato de cumprir seu papel.  Imagem: aqui

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